Lou, Raul, Leal

Leandro Leal
4 min readOct 28, 2020

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Tem sete anos já. Eu estava na casa de praia de um amigo com minha namorada. Acho que foi ele — ou teria sido ela? — que me contou. Viu no smartphone, ao qual eu ainda não tinha me rendido, mesmo que naquele tempo todos há muito já tivessem o seu. Tinha medo de ficar viciado, como, sabia, estava fadado a ser. A má notícia veio da boca de um dos dois. “O Lou Reed morreu, você viu?” “Não acredito, cadê?”. Notícia dada por (site de) revista ou jornal confiável, com aspas da viúva Laurie Anderson, que afirmava algo como “Lou partiu em paz”.

Tinha então 71 anos e, mesmo tendo largado drogas e álcool há tempo, vivera além do que se esperava para quem parecia seguir à risca a letra dos seus versos mais famosos. Como passeou pelo lado selvagem, o Lou. Me lembro de estar ligeiramente bêbado, mas, se a quem está nesse estado se costuma chamar alegre, logo me converti no oposto. Não importava que o estilo de vida que levou por longos anos tivesse demorado a cobrar seu preço, não importava quanto suas 7 décadas tivessem sido proveitosas, porra, que merda que o Lou Reed morreu.

Noite passada, de madrugada, ele veio me visitar. Não lembro do enredo do sonho, mas lembro de ter me divertido, de termos conversado. Lembro um pouco mais agora do que quando acordei, os trechos submergindo como tesouros de um naufrágio recente. Lembro que às vezes ele parecia o Bowie da capa de “Diamond Dogs”. Não que tivesse o corpo canino do amigo inglês na arte do disco, mas tinha algo nele que me trazia à memória a ilustração. O resto do tesouro repousa no fundo do mar subconsciente.

Sentei à frente do computador para começar a trabalhar e a memória do sonho me veio, ainda sem nenhum dos poucos detalhes acima. Escrevi três linhas a respeito e postei no Facebook, pedindo de brincadeira para alguém que gostasse de interpretar sonhos desvendasse o significado desse. Num comentário, um amigo lembrou: “Hoje faz 7 anos que o Lou morreu. Toma essa, ateu.” Sim, me coloco na fileira dos céticos, aqueles a quem a maioria olha com desprezo ou pena ou os dois. Não acredito, portanto, em explicações sobrenaturais, espiritualistas e afins para sonhos ou para o que for. Contabilizo a coincidência como o resultado de passar muito tempo ouvindo, lendo, pensando e conversando sobre música. Lou Reed é um dos meus heróis; mais para anti-herói, como os outros que compõem essa galeria imperfeita.

Meu pai tem algum talento musical. Autodidata, o vejo se arriscar em violões, pianos e sanfonas desde bem antes de sua cabeça se tingir de branco. Isso, porém, não o habilita a figurar entre meus heróis da música. Falta ao Seu Leal o mesmo brilhantismo no instrumento, no vocal, nas composições, no palco. Falta a biografia que o desqualifique. Meu pai não é um anti-herói. Ele é o que sobra quando se remove o prefixo. Para mim, para o meu irmão e para alguns primos, que sei que o têm assim. Meu herói esteve no hospital ontem. Internara-se para um exame, de rotina, mas de considerável risco. Requeria acompanhante. Lá estava eu, assumindo o papel que já lhe coubera tantas vezes.

Terminado o preparo, aguardávamos a hora em que o viriam buscar no quarto. Seu Leal é uma pessoa fácil, não reclama de nada. Quem falava era seu corpo. Acusava a preocupação, a impaciência. Sugeri que se deitasse, ofereci meu fone e um podcast, do qual já lhe havia falado, pensando que ele se interessaria. Mais uma vez, não reclamou, entretanto, seus olhos acusavam o tédio. “Prefere ouvir música, pai? O que você quer ouvir?” Pediu o disco que Alcymar Monteiro, um forrozeiro pernambucano, gravara com o repertório de outro — Gonzaga, o maior de todos. Não encontrei esse, mas outro qualquer de Alcymar o satisfez. Seu Leal não reclama. Acabado o disco de Alcymar, perguntei o que mais ele gostaria de escutar. Não esperei sua resposta para sugerir Raul Seixas. Sabia que ele gostava. As expressões dele enquanto escutava não me desmentiram.

Raul andou pelo mesmo caminho que Lou, com igual volúpia, com o mesmo foda-se. Seu passeio, porém, se encerrou bem antes. Tinha 45 anos quando morreu. Se vivo, teria quase a mesma idade de meu pai. Meu pai tem os 78 que Lou teria se ainda estivesse por aqui. Não sou tão fã de Raul quanto de Lou, mas sou o suficiente, de sua personalidade e de sua obra, para colocá-lo no meu panteão dos anti-heróis.

Meu pai, sempre que tem a oportunidade — e quando não tem, cria uma –, diz que quer chegar aos 100 anos. Ontem mesmo contou seu objetivo ao médico, quando este me chamou para ouvir junto com ele seu parecer sobre o exame. Bastante ativo, de uns anos para cá, meu pai começou a correr. Otimista, é adepto descarado do carpe diem e de frases motivacionais de próprio cunho. Bebe pouco, muitas vezes fazendo careta. Tão diferente de Lou, tão diferente de Raul.

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Leandro Leal

Redator publicitário e escritor, autor dos romances Quem Vai Ficar Com Morrissey? (Edições Ideal, 2014), de Olho Roxo (Realejo Livros, 2021).