Estilo e Joanetes

Leandro Leal
3 min readAug 11, 2021

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Aos 13, tive meu primeiro par de adidas pretos. Minha relação com esses tênis mudaria a minha vida. Absorto neles, preocupado muito mais com a sujeira que os cobria do que com o trânsito, espanando-os com tapas delicados, acabei não vendo um carro que me bateria com muito mais força. Os meses passados na cama, com a perna esquerda quebrada, se me afastaram da rua, me aproximaram ainda mais da música, da leitura, dos filmes, da cultura pop. A história, que teria tido outro desenrolar em tempos de redes sociais e smartphones, acabou por inspirar meu primeiro romance, “Quem Vai Ficar Com Morrissey?”.

Aos 20 e poucos, tive um outro par de adidas da mesma cor. Me acompanharam por um tempo, por poucas e boas, mas não tiveram a mesma importância. Como igualar tamanho simbolismo? Essa palavra foi a primeira, por mais óbvia, que me ocorreu ao deparar com outros adidas pretos numa vitrine da Galeria do Rock. O ano era 2014, e “Quem Vai Ficar Com Morrissey?” tinha acabado de ser lançado. “No crédito, por favor. Dá para parcelar?”

A história dos adidas de 2014 também envolveu dor. Foi, porém, muito mais sem graça que a original. Sua fôrma estreita não fora feita para pés como os meus, amaldiçoados por descomunais joanetes. Mesmo assim, insisti em usá-los. Eram um modelo simples, de cano médio e sola baixa, do jeito que eu gostava. Como a loja já não aceitaria devolução, só me restava torcer para os tênis se amaciarem, se adaptarem aos meus pés. A dor de andar com eles, um dia, haveria de compensar. Só que não. A vontade daqueles adidas nunca se dobraria à minha. Acabaram por ficar guardados na sapateira até o dia em que, enfim conformado, os doei.

Desde março do ano passado trabalhando em casa, passo a maior parte do dia descalço. Alívio para meus joanetes, cobertos, quando são, apenas por tênis de corrida, muito mais maleáveis. Mas, e quando fosse preciso usar tênis de passeio? Os únicos desse tipo que ainda possuo, em condições lastimáveis, rolavam em campo e faziam sinal, pedindo substituição. Sempre que cogito comprar novos tênis de passeio, o fantasma dos adidas pretos me atormenta: “Compra outros iguais, compra outros iguais.” O problema é que, mais que esse fantasma, me atormentam os joanetes.

Enquanto olhava sites de tênis, a resposta surgiu num anúncio pop-up: um belo modelo de corrida preto, tão belo que nem parecia de corrida, tão belo que não devia ser bom para correr. (Quem corre sabe: a estética dos bons modelos específicos só agrada quem curte aquelas faixas usadas por garis, ciclistas e motoqueiros.) Para passear, no entanto, estava de bom tamanho. E a questão era justamente o tamanho.

Meus novos adidas pretos chegaram ontem. E não é que são bonitinhos mesmo? Quando os calcei, fiquei emocionado com a maciez, de pronto aprovada pelos meus joanetes.

Antes de terminar esta crônica, falta falar do que me inspirou a escrevê-la. Estes meus novos adidas também trazem sua carga de simbolismo. Não deixam de ser, embora não comprados pensando nisso, também um modelo comemorativo de um novo livro.

Há poucos meses, lancei meu segundo romance, “Olho Roxo”. Difere de “Quem Vai Ficar Com Morrissey?” em quase tudo. O ponto comum entre os dois é justamente a ambiência pop: música, filmes, programas de TV, marcas. Em “Olho Roxo”, não há tênis adidas, mas as páginas são impregnadas do cheiro do sabonete Phebo. Falta Morrissey, mas não Velvet Undergound, Echo And The Bunnymen e até Amado Batista.

Depois de tentar, durante o processo de escrita de “Olho Roxo”, me desvencilhar da literatura pop de “Quem Vai Ficar Com Morrissey?”, decidi abraçar o gênero. Mesmo considerado menor pela intelligentsia, aceitei que é nele que melhor me expresso. Meu terceiro livro, não publicado, também pode ser colocado nessa prateleira. E o quarto, que estou escrevendo, adivinha.

Aos 44, que completo amanhã, entendo o estilo como os joanetes. Não tente sufocá-lo, não tente negá-lo, e você será muito mais feliz.

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Leandro Leal

Redator publicitário e escritor, autor dos romances Quem Vai Ficar Com Morrissey? (Edições Ideal, 2014), de Olho Roxo (Realejo Livros, 2021).